quinta-feira, abril 17, 2008

As kiança tudo brincando

No trajeto Paris – Sumpaulo: Waldiscléia e suas duas “kiança”

– pausa para explicação etimológica -

1) Variação da palavra “criança”, “kiança” é o complemento nominal mais utilizados pelos pobres para justificar uma indignação. Podem notar que num noticiário popular – Cidade Alerta, por exemplo – tem aquele caso do filho-de-papai que saiu dando cavalo-de-pau com o carro numa rua cheia de pedestres, perdeu o controle, atropelou o pedreiro pai de doze filhos que voltava do trabalho e nem preso foi.
O repórter vai até o local do acidente entrevistar os moradores ou as testemunhas e invariavelmente ouvirá o depoimento indignado de uma senhora que dirá:

- O moço entrou a toda na rua e tinha um monte de kiança brincano. Imagina só o perigo se ele atropela as kiança ...

A narrativa acima mostra que, ao contrário de estar cagando pra morte do pedreiro, essa senhora está indignadíssima com o ocorrido e usa as “kiança” para potencializar a gravidade do acidente e o sentimento de revolta.

2) “Kiança” também pode ser usada como objeto direto de desculpa esfarrapada. Um exemplo é o ramelento que dispara a campainha da casa do seu Zé todo o santo dia. Quando o seu Zé pega o moleque no flagra e vai tirar satisfações com a mãe ele indubitavelmente ouvirá:

- Ai seu Zé, num posso batê não. É kiança ...

Se o seu Zé fizer justiça com as próprias mãos e espancar o garoto até a morte o termo “kiança” que aparecerá na narrativa da reportagem voltará então a ser complemento nominal de indignação.

- voltando ao causo-

Encontrei a Waldiscléia e suas duas filhas na fila do check-in. As meninas corriam de um lado para outro e a mãe gritava em alto brado para que elas parassem. Num determinado momento a fila inteira olhava feio para a mãe, não por causa das meninas mas por causa dos gritos da histérica. Ela se justificava para a fila impassível : “Ai gente, são kiança...” .
Reencontrei-as no raio-x da polícia alfandegária francesa. Waldiscléia estava com a mala de mão cheia de gelatina e suco em caixinha, o que é proibido por lei e quem viaja já está careca de saber que não se entra com líquido na cabine em vôos internacionais. Mas ela se mostrava indignadíssima em ter sua carga de gelatinas apreendida. Mandou as kiança comerem tudo ali mesmo na frente da policial francesa enquanto gesticulava e falava alto (em português) para a policial impassível que não estava entendendo lhufas: “Ai dona, eu sei que é proibido, eu sei que não pode mas são kiança ...” (como se quisesse dizer que nesse caso específico a lei deveria ser reescrita).

No avião o aeromoço pediu gentilmente para que Waldiscléia controlasse as meninas. Já sabem a resposta, né? Pois é: “Num posso batê não, moço, elas são kiança ...”
E as kiança infernizaram a todos por um bom tempo.

Na manhã seguinte lá estavam as kiança novamente enchendo o saco. Sentaram na esteira de bagagens achando que era carrossel. Um funcionário da EMBRAER perde a paciência e grita pras kinça saírem e a mãe rebate no mesmo tom: “Num grita com elas não, são só kiança!”.
Na saída para o saguão da ala de desembarque existe um grande “matadouro” para organizar a fila dos passageiros que terão que passar pelo último pesadelo: ter a mala revistada ou não pela polícia federal. Essa fila, apesar de rápida, é kilométrica pois são passageiros de vários vôos que se organizam para sair ao mesmo tempo. Ouço a voz de uma mulher falando muito alto, era Waldiscléia que gritava com as kiança. Não pude me conter de curiosidade e estiquei o corpo para ver o que estava acontecendo. A fila não andava mais atrás de mim pois as kiança, que tinham pego um carrinho de bagagem cada uma para brincar, conseguiram encalacrar um carrinho no outro e bloquearam a fila para o desespero de Waldiscléia.
Ainda antes de sair pude ouví-la gritando: “Chuta elas não, moço! São kiança, são kiança*!

*Kiança é imflexível, inconjugável e não existe no plural.